sexta-feira, 28 de julho de 2017

O Prodígio (Emma Donoghue)

Treinada por Florence Nightingale num tempo em que as boas práticas da enfermagem estavam muito longe de estar bem definidas, Lib Wright conquistou a reputação de enfermeira competente. É essa reputação, aliás, que faz com que lhe seja oferecido um trabalho no chamado centro morto da Irlanda. Mas basta-lhe chegar ao destino para perceber que o serviço a prestar não é nada do que Lib imaginava. Ao longo dos quinze dias seguintes, deverá, alternando turnos com uma freira, vigiar a pequena Anna, que afirma viver há quatro meses sem qualquer alimento. Todos ali parecem julgá-la um milagre, mas, céptica perante o que lhe é contado, Lib tem uma opinião bem diferente. Só pode tratar-se de uma fraude. E, decidida a desvendar a verdade, Lib observa a criança com olhos de águia, tomando notas da sua condição e assimilando o seu estranho fervor religioso - ao mesmo tempo que a dolorosa verdade começa a afirmar-se por si mesma: Anna começa a definhar. Mas, se assim é, o que aconteceu durante os outros quatro meses? O que se passa, afinal?
Centrado no que parece ser um facto prodigioso e dividido entre graus de crença e cepticismo, este é um livro em que, inevitavelmente, as complexidades da fé são um elemento crucial. À fé profunda e quase fanática dos O'Donnell opõe-se a visão muito mais prática de Lib. Mas a distância entre a fé e a descrença não é algo assim tão simples como escolher entre um pólo ou outro e entre Anna, a máxima crente, e Lib, a perfeita céptica, há vários graus de afirmação ou negação da fé. E este é, sem dúvida alguma, um dos pontos mais marcantes deste livro, já que o elevadíssimo fervor religioso de Anna, que, de início, parece ser a base de todas as coisas, acaba por revelar outras perspectivas - fazendo sobressair as diferenças entre uma fé ponderada e o fervor excessivo de uma interpretação literal dos ditames religiosos.
E este é apenas um dos vários temas complexos presentes nesta história. Há também o papel da mulher na sociedade da época, retratado na forma como Lib, enfermeira, é muitas vezes vista como inferior aos homens que a contrataram, bem como nas estranhas posições de algumas personagens face a certas revelações sombrias. E há ainda a pobreza geral em que todos os da região parecem viver e que os torna vulneráveis a influências externas, nem todas bem intencionadas. Tudo isto cria um ambiente complexo, delicado, cheio de questões pertinentes, e a mestria com que a autora entrelaça todos estes aspectos é algo de simplesmente fascinante.
O que me leva ao que é talvez o grande ponto forte num livro todo ele cheio de forças: o tom da narrativa. Escrita num registo bastante directo, em que grande parte do impacto das coisas é enfatizado pela acção ou pela descoberta, a história adquire um ritmo inesperadamente intenso e fá-lo desde muito cedo. Primeiro, o mistério do que se poderá passar com Anna prende a atenção. Depois, as sucessivas descobertas e possibilidades alimentam a necessidade de descobrir o que realmente se passa. E, a partir daqui, o impacto de cada revelação, não só na percepção dos factos, mas principalmente a nível emocional, faz com que tudo se torne memorável, desde a determinação de Lib em descobrir o método do que só pode ser uma fraude à tentativa desesperada de salvar alguém que parece não querer ser salvo.
E, claro, tudo culmina num final ainda mais intenso e impressionante, não só pelo impacto dos acontecimentos em si, mas também porque, ao longo do percurso, todas as personagens foram despertando algum tipo de emoção. E, no fim, ficam na memória as dificuldades do caminho, mas também a força de quem o percorreu, rumo a uma conclusão intensa, dura... e inesperadamente adequada.
Complexo, mas inesperadamente viciante e tão marcante nos grandes momentos como nas pequenas coisas, pode-se muito bem dizer que se trata de um prodígio em todos os aspectos, da escrita aos temas que aborda, passando pela construção de um conjunto de personagens tão marcante como a história que têm de percorrer. Um livro que prende desde as primeiras linhas e que não deixa de fascinar até ao fim. Maravilhoso.

Título: O Prodígio
Autora: Emma Donoghue
Origem: Recebido para crítica

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